Quando empreender é resistir: como a inclusão financeira fortalece vidas e territórios

Empreender, para grande parte da população negra no Brasil, tem sido menos uma escolha e mais uma resposta às barreiras impostas pelo mercado de trabalho formal. A informalidade, o desemprego e a falta de oportunidades com direitos e segurança obrigam milhares de pessoas negras a buscar no empreendedorismo uma alternativa para gerar renda. No entanto, mesmo partindo da necessidade, muitos desses negócios têm se mostrado potentes caminhos de construção de autonomia, identidade e transformação social e econômica. 

Segundo dados do Sebrae, pardos e negros representam hoje 52% dos empreendedores no país, somando cerca de 15,2 milhões de pessoas. Esse contingente cresceu 28% entre 2012 e 2023, o que revela tanto a força desse movimento quanto a urgência de criar condições estruturais que favoreçam seu desenvolvimento. O dado reforça a importância de iniciativas que não apenas reconheçam esse protagonismo, mas que contribuam efetivamente para sua sustentabilidade. 

Fotos: Esquerda: beneficiado pelo negócio social Trampay. Direita: sede da Casa das Mulheres da Maré. 

Apesar da expansão numérica, persistem desigualdades profundas que limitam o crescimento desses negócios. A maior parte atua com limitações pela baixa escolaridade, pouco capital de giro e acesso restrito a crédito e formação. Ainda de acordo com o Sebrae, 77,6% dos empreendedores negros têm faturamento mensal de até dois salários-mínimos, e 45,1% possuem escolaridade até o ensino fundamental. Esses fatores, somados às altas taxas de informalidade e à baixa contribuição à previdência, reduzem a resiliência dos negócios e dificultam a construção de trajetórias mais sólidas e duradouras. 

Além disso, durante a pandemia de COVID-19, essas desigualdades se intensificaram. Pequenos empreendedores negros foram os mais afetados, registrando maiores perdas de faturamento e encontrando mais dificuldades para acessar linhas emergenciais de crédito. A 14ª edição da pesquisa do Sebrae sobre o impacto da pandemia nos pequenos negócios indicou que a recuperação desses empreendedores tem sido mais lenta, com impacto direto em suas finanças pessoais e na sobrevivência de seus negócios. 

77,6% dos empreendedores negros têm faturamento mensal de até dois salários-mínimos e

45,1% dos empreendedores negros possuem escolaridade até o ensino fundamental 

Foto: Produção de marmitas pela Maré de Sabores durante a pandemia. 

Como forma de enfrentar este cenário, nos últimos anos, observa-se uma maior mobilização em torno do fortalecimento do empreendedorismo negro. O conceito de "dinheiro negro” (“Black money"), que incentiva a circulação de recursos dentro da comunidade negra, tem se popularizado. Ao lado dele, iniciativas de formação e apoio técnico estão contribuindo para o amadurecimento dos negócios e fortalecimento da autoestima de seus fundadores. É neste ambiente que a educação financeira aparece como uma peça-chave. Aprender a precificar corretamente, separar contas pessoais das empresariais, controlar o fluxo de caixa e planejar investimentos são ações fundamentais para que um negócio sobreviva no médio e longo prazo. 

A NESsT Brasil atua diante deste contexto de forma estratégica para promover a equidade racial por meio do fortalecimento de negócios de impacto liderados por empreendedoras e empreendedores negros. A Iniciativa de Equidade Racial oferece financiamento, mentoria e assistência comercial a empresas que não apenas são lideradas por pessoas negras, mas que também geram impacto positivo e direto na vida da população negra em situação de vulnerabilidade. O objetivo é ampliar o acesso a capital, fomentar a criação de trabalho e renda e impulsionar o crescimento desses negócios. A atuação da NESsT é pautada por uma lógica emancipadora: investir em negócios de impacto que enfrentam as causas estruturais da desigualdade racial e que oferecem soluções concretas e duradouras. 

Nayana Cambraia, gerente de portfólio da NESsT no Brasil, destaca que promover justiça social no país significa reduzir desigualdades estruturais, garantindo acesso a direitos básicos e criando oportunidades reais para todas as pessoas, independentemente de sua origem. Nessa conjuntura, a justiça racial é considerada por ela um pilar fundamental. “Quando a gente fala de investimento de impacto para a equidade racial, eu estou falando de dar mais vida para as pessoas, estou falando de dar condição de sonhar. E dar condição de sonhar faz toda a diferença”, diz. 

“(...) eu estou falando de dar mais vida para as pessoas, estou falando de dar condição de sonhar. E dar condição de sonhar faz toda a diferença.”
— Nayana Cambraia | gerente de portfólio NESsT

A atuação da NESsT contrasta diretamente com as lógicas predominantes no sistema financeiro tradicional, estruturado historicamente para privilegiar quem já possui capital, garantias formais e acesso a redes de poder. Nesse modelo, populações negras e periféricas são frequentemente classificadas como de "alto risco" — não por sua capacidade real, mas por critérios que perpetuam desigualdades. Ao investir em empreendimentos liderados por pessoas negras e voltados à transformação social, a NESsT desafia esse paradigma e propõe uma nova forma de distribuir recursos: baseada no potencial de impacto e priorizando a variável da reparação de desigualdades históricas. 

Foto: Mariana Aleixo, cofundadora da Maré de Sabores

Entre as iniciativas apoiadas pela NESsT no Brasil estão a Maré de Sabores e a Trampay. A Maré de Sabores é um negócio criado em 2010 no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, que abre oportunidades de trabalho e traz formação em gastronomia para mulheres periféricas, dentre as quais aproximadamente 55% são pardas e negras. A iniciativa promove a geração de renda e autonomia financeira a partir da prestação de serviços em gastronomia que valoriza o saber local e constrói uma relação consciente com o dinheiro. Além da renda com buffet e venda de refeições, as mulheres recebem apoio para planejar seus negócios, organizar suas finanças e pensar em estratégias de sustentabilidade. 

“Nós entendemos logo no início que precisávamos oferecer às mulheres mais do que o conhecimento técnico, então incluímos formações sobre política e gênero, para que elas entendessem seu papel na sociedade e se sentissem empoderadas para gerar sua própria renda e estar à frente de negócios. Este é um lugar de poder, em que muitas delas não se viam. Além disso, atuamos de forma a ensiná-las como gerir seus empreendimentos e lidar com a administração financeira, o que tem se mostrado fundamental para que elas sejam mais livres para escolher seus caminhos”, comenta Mariana Aleixo, cofundadora da Maré de Sabores.

1.400+ mulheres capacitadas, muitas das quais iniciaram seus próprios negócios e melhoraram suas condições de vida. 

Foto: Aluna da iniciativa Maré de Sabores. 

Em mais de uma década, o negócio formou cerca de 1,4 mil mulheres, muitas das quais passaram a empreender ou melhorar significativamente suas condições de vida com base no conhecimento adquirido. Elma Ashar aprendeu com a Maré de Sabores e hoje é instrutora de gastronomia na iniciativa. Ela já havia se formado em gastronomia, mas foi no negócio que acessou o conhecimento que faltava para transformar o seu saber em empreendimento. “Hoje eu sou uma confeiteira, dona da minha própria empresa. Sou uma referência para outras mulheres com quem convivo e me orgulho muito disso. Eu falo que se elas persistirem, podem ter a autonomia que eu tenho hoje. Não trocaria o meu negócio por nenhum emprego”, diz. 

“Hoje eu sou uma confeiteira, dona da minha própria empresa. (...) Eu falo que se elas persistirem, podem ter a autonomia que eu tenho hoje. Não trocaria o meu negócio por nenhum emprego.”
— Elma Ashar | confeiteira e ex-aluna do Maré de Sabores

Já a Trampay é uma fintech que oferece soluções financeiras específicas para trabalhadores de aplicativos e autônomos — muitos deles negros e sem acesso a serviços financeiros tradicionais. A startup nasceu da vivência de seus fundadores com a exclusão bancária. “Cresci vendo de perto o que é viver à margem do sistema financeiro”, conta Jorge Junior, CEO da Trampay. Hoje, a empresa oferece ferramentas como adiantamento de recebíveis, cartão de crédito pré-aprovado, financiamento de motos e bikes elétricas, e seguro acessível. Além disso, desenvolve educação financeira integrada à experiência dos usuários e com linguagem direta. “Não adianta empurrar cartilha de banco para quem sempre foi rejeitado por ele. Praticamos empatia radical”, afirma. 

Apesar dos desafios, a experiência da Trampay mostra que é possível transpor as barreiras. A fintech vem testando, na prática, outras formas de avaliar risco e crédito, reconhecendo o trabalho como ativo. “Enquanto alguns precisam de garantias lastreadas em imóveis, devemos considerar o trabalho como um patrimônio. É ele que garante a qualidade do requerente e o risco do crédito”, defende Jorge. 

Esquerda: ação de divulgação da empresa Trampay. Meio: Escritório para trabalhadores de aplicativos da Trampay. Direita: Jorge Júnior, CEO da Trampay, no meio de dois trabalhadores atendidos pela iniciativa. 

Esse olhar estratégico, baseado na vivência dos próprios empreendedores, mostra que existem caminhos possíveis para democratizar o acesso ao capital. Quando questionado sobre o que espera do futuro, Jorge Junior é enfático: quer transformar a lógica do mercado financeiro, aproximando-o de quem hoje move a economia, mas segue invisível para ele. 

Embora os desafios ainda sejam profundos, o avanço de iniciativas como a Maré de Sabores e Trampay demonstra que é possível construir caminhos de equidade por meio do empreendedorismo. A chave para isso passa, necessariamente, pela democratização do conhecimento financeiro. Educar para que empreendedores negros possam não só abrir seus negócios, mas também crescer, competir e prosperar é uma das formas mais eficazes de combater o racismo estrutural e promover justiça econômica no país. A transformação já começou — e os próprios empreendedores estão mostrando o caminho. 


Baixe o relatório completo em pdf e compartilhe